A pandemia negacionista
Relembro um episódio que vivi no começo de 2020 e que antecipava – sem a gravidade ruidosa, criminosa e irracional – o novo cotidiano brasileiro. A cena aqui retratada, foi quando participei, representando a ABRAT, de uma audiência pública na Câmara dos Deputados para ouvir a sociedade civil sobre o PLC 146/2019, que tem como finalidade instituir o “marco legal das startups e do empreendedorismo”. Na ocasião pontuei que o projeto negava os avanços humanistas e constitucionais protetivos do trabalho decente, além de reproduzir a velha regra que beneficia o dono do dinheiro e retira direitos do dono do trabalho.
Mas não fora o negacionismo à dignidade da classe trabalhadora o fator que me chamara a atenção, preocupando-me. O que me intrigara foram os gritos exalados por um grupo ruidoso que panfletava na porta do parlamento, como se fosse arauto da ciência. Os manifestantes berravam, em documentos e palavras, que “as vacinas são uma fraude” e, em alinhamento agressivo, que:
NÃO Evitam doenças.
NÃO salvam vidas.
NUNCA erradicam doenças.
DESTRÓEM a saúde.
Provocam DANOS NEUROLÓGICOS.
Provocam MICRO AVCs.
Provocam a MORTE em muitos casos.
CAUSAM doenças.
PROPAGAM doenças.
Escrevi, naquela época, que tinha achado esquisitíssimo o movimento, ainda mais quando a ciência já tinha pacificado que as vacinas eram eficientes no combate à várias doenças. Até porque a primeira vacina foi aplicada em 1796, quando Edward Jenner anunciou a sua eficácia no combate à varíola. Celebrada em 1885, quando Louis Pasteur seguiu o mesmo critério científico ao anunciar a vacina contra a raiva animal. Festejada em 1960, desta vez por Albert Sabin e sua popular gotinha contra a paralisia infantil. E assim aplicadas contra a catapora, coqueluche, difteria, febre amarela, gripe, sarampo, tétano, tifo, tuberculose e outras doenças que deixaram de ser grandes ameaças à humanidade.
Agora que o Brasil de 2021 enfrenta a maior crise sanitária, hospitalar e de humanidade de sua História, não posso deixar de registrar que erramos ao não combater a nova praga negacionista que ainda engatinhava em gritos e panfletos. Não percebemos que ela repetiria – em proporção catastrófica, trágica e mortal – a estratégia já praticada no Brasil de 1904, quando parte da população carioca se insurgira contra a lei da vacina obrigatória executada por Oswaldo Cruz. No tempo anotado como “Revolta da Vacina”, triunfaram-se as mesquinhas disputas políticas que se alimentavam do negacionismo, não obstante as pessoas que morreram diretamente pela doença ou pela recusa da cura.
A repristinada “pandemia negacionista” permanece desprezando a ciência. Nega a validade dos dramáticos depoimentos dos profissionais de saúde quando mostram que a Covid-19 não é uma “gripezinha”. Nega as recomendações da OMS. Nega a eficácia do distanciamento social e o uso de máscaras preventivas. Nega o papel social do Estado como protetor da sociedade. Nega tudo que é civilizatório. E nesse perverso emaranhado de negações, não enfrenta a realidade de que as vacinas são necessárias, importantes e capazes de enfrentar um vírus que se espalha de forma igualmente pandêmica.
O resultado do negacionismo desenfreado e descontrolado não poderia ter sido mais trágico e paralisante. Ele tem efeito mortal sobre as pessoas que seguem aglomeradas em egoísmos e despidos da máscara da empatia. Contaminou as políticas públicas, adoeceu as redes de solidariedade criadas pela sociedade civil e confundiu as mentes mais sensíveis às Fake News.
O revisionismo da História, a negação da ciência, o desprezo aos avanços humanitários e o obscurantismo político são vírus que devem ser combatidos com urgência, colocando em permanente isolamento social a ideologia negacionista. Afinal, o negacionismo é também doença que merece ser curada, especialmente com a vacina da livre e correta informação. E se é para dizermos NÃO, que seja apenas para condenarmos a “pandemia negacionista” dos governantes e de seus mortais seguidores.
Cezar Britto é advogado, escritor, membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas (ASLJ), da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP/CNBB) e Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Foi presidente da OAB NACIONAL e da União dos Advogados da Língua Portuguesa (UALP) e vice-presidente do Conselho de Ordens e Associações de Advogados da América do Sul (COADEM).